Com a revolução tecnológica, surgiram nos últimos anos diversas plataformas digitais que permitiram construir aquilo que se convencionou denominar de economia colaborativa.
Nesse sistema, os indivíduos conectam seus desejos e necessidades por meio basicamente das novas tecnologias, sobretudo a partir do avanço da capacidade de interação dos smartphones e seus aplicativos.
Como consequência, torna-se possível visualizar uma importante mudança cultural: o objetivo do indivíduo passar a ser a posse e não mais propriedade.
Em outras palavras, há em curso uma virada de paradigma onde queremos o usar e não necessariamente o ter.
Trata-se, portanto, de um processo gradual, rápido e extremamente atraente, face ao seu dinamismo, que permite especialmente uma nova forma de concorrência, novas possibilidades e, por muitas vezes, reduções gerais de preços.
No entanto, apesar dos avanços que tais modelos de operações negociais implantaram, deve ser ressaltado que, como qualquer outra novidade, primeiramente são observados os benefícios para somente após serem detectados os seus aspectos negativos.
No caso do AIRBNB, que é o objeto dessa análise, já surgem os primeiros grandes conflitos operacionais que derivam basicamente de dois pontos centrais:
Com relação à tributação, o impasse surge inicialmente na forma de classificação da atividade exercida pelo AIRBNB, ou seja, qual a natureza jurídica desse mecanismo? Trata-se de uma plataforma de hospedagem ou uma plataforma para locação por temporada?
A resposta a esses questionamentos é extremamente relevante porque existem questões fiscais que dela dependem.
Em sendo plataforma de hospedagem, haveria ao AIRBNB, como há aos meios de hospedagens, por exemplo, a incidência sobre suas operações do ISS – Imposto Sobre Serviços, conforme previsto no item 9.01 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003.
Em existindo tal incidência, surge uma segunda pergunta: sendo um serviço de hospedagem, tal qual um hotel residência, de quem seria a responsabilidade pelo pagamento do imposto? Do anfitrião ou do AIRBNB?
Por outro lado, se o AIRBNB for qualificado como uma plataforma de locação por temporada, surgem outros questionamentos relevantes, tal qual: poderia o proprietário de determinado imóvel disponibilizar o seu bem no AIRBNB mesmo em caso de impedimento previsto em convenção condominial?
A questão é tão polêmica que tem gerado o ajuizamento de ações em todo território nacional por parte de condomínios e/ou proprietários que buscam dirimir uma questão central: o direito de propriedade, tratado como um direito fundamental no artigo 5º da Constituição Federal, somado aos seus direitos assegurados no artigo 1.335 do Código Civil, tal qual usar, fruir e livremente dispor das suas unidades, pode/deve sofrer limitações, sobretudo se o argumento for exatamente as regras da Lei do Inquilinato que autoriza a locação por temporadas?
Ou: seria possível presumir que a locação pela plataforma do AIRBNB geraria risco a utilização de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes, conforme previsto no artigo 1.336, inciso IV, do Código Civil?
Ou, por outro lado, não poderia o proprietário suscitar que ao disponibilizar, mediante remuneração, um bem que não está utilizando ele estaria dando, de certa forma, uma função social à propriedade justamente como prevê o artigo 5º, XXIII, da Constituição Federal?
Tais questionamentos somados àqueles de natureza tributária dão conta de que a sociedade deu início a um novo ciclo na relação com a economia colaborativa, ciclo esse que resulta na construção de responsabilidades aos agentes envolvidos.
No Brasil, comumente, associa-se a criação de regras a leis e de leis à burocracia que, por sua vez e invariavelmente, recebe uma conotação negativa.
No entanto, apesar de a economia colaborativa ter consigo um discurso que defenda basicamente um universo com menos regras e embora esse discurso seja verdadeiramente atraente, em especial no Brasil onde há de fato uma ampla regulamentação, não se pode perder de vista que ainda assim toda e qualquer atividade econômica deve se submeter a regras pois somente assim é possível, por exemplo, criar direitos e deveres frente aos consumidores, ao meio ambiente, ao trabalho e, portanto, a sociedade de forma geral.
E é aqui que adentra a importância da burocracia como elemento fundante do Estado Racional.
A ideia original de Max Weber acerca da burocracia tinha como objetivo eliminar por completo o caráter político na relação entre administrador e administrado, i.e, conduzir os processos no âmbito público a uma neutralidade imprescindível.
Por óbvio que no Brasil esse cenário enveredou para uma pessoalidade que caminha exatamente em sentido inverso ao que seu projeto original, sendo essa a razão para tornar a palavra burocracia vinculada a um aspecto depreciativo.
Contudo, essa distorção per si isso não pode ser considerada um elemento que impeça que se apliquem aos atores envolvidos na relação Consumidor-Airbnb-Anfitrião-Sociedade um mínimo de regulamentação que permita construir um cenário de necessária segurança jurídica, sobretudo se partirmos do pressuposto de que a legislação atual não é capaz de abranger igualmente os sistemas de economias colaborativas.
Isso não significa desconhecer que há em trânsito um evidente processo de globalização econômica qualificado basicamente pela integração sistêmica em âmbito supranacional que atua de forma quase que independente do direito e da política, o que, por consequência, carrega consigo uma ruptura do sistema do Estado-Nação.
Mas isso, em si, não elimina o poder que deriva da Soberania dos Estados em criar regras dentro do seu espaço territorial, mesmo que os atores ali não estejam presentes fisicamente, o que, hoje, se constitui em uma realidade a partir do surgimento dos espaços virtuais.
Isto é, a simples aplicação ao AIRBNB das normas gerais previstas, por exemplo, no Código Tributário Nacional, no Código do Consumidor e/ou no Código Civil geraria, sem maiores dúvidas, um risco jurídico demasiado a todos os atores envolvidos justamente pela peculiaridade da atividade econômica em questão.
Ou seja, o risco deriva justamente da natureza sui generis do AIRBNB que congrega, concomitantemente, características de uma plataforma de hospedagem com uma plataforma para locação por temporada.
E dada essa natureza peculiar, é imperioso que se proponha o debate acerca da necessidade ou não de regulamentação dessa espécie de operação por meio de legislação específica justamente como uma forma de criar regras claras e objetivas que permitam a todos os envolvidos a necessária segurança jurídica e, outrossim, uma paridade comercial entre os modelos concorrentes, como a própria hotelaria e imobiliárias.
O que se pretende dizer, em termos resumidos, é que permitir que o AIRBNB atue como hotéis e imobiliárias sem, todavia, impor-lhe as mesmas obrigações, geraria por óbvio um ambiente de concorrência desequilibrado. E é exatamente esse o ponto central do debate: como permitir que as novas tecnologias operem dentro de um jogo cujas regras sejam claras a todos os envolvidos?
A resposta parece estar na construção de regras específicas e pontuais.
Texto de Me. William de Aguiar Toledo. Advogado. Sócio da Aguiar Toledo Advogados. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Doutorando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa – UAL.